Era setembro em um porto qualquer.
O ano era 1964.
O sol da tarde já ia longe, quando ele entrou pela porta na qual estava escrita "tatooagens"
Já acostumado com o tipo que entrava trajando o comum uniforme da marinha e carregando sua sacola às costas, o homem de negras barbas por tras do balcão continuou a olhar sua revista de mulher nua.
O marinheiro desfez de sua carga jogando-a em um canto, e ficou por ali... olhando os desenhos que estavam expostos nas paredes de madeira branca.
Depois de algum tempo, o "barba negra" fechou a revista, pegou suas agulhas, tintas, aprontou a cadeira e disse:
- E então marujo? Vamos começar?
O marinheiro tirou a camisa e se sentou na cadeira.
- O que vai ser? - perguntou o tatuador.
Em sua mente não havia dúvidas, quando respondeu:
- Um coração! No lado esquerdo do peito.
- Deixou o seu em algum lugar?
E com um suspiro capaz de mensurar o tamanho de sua dor ele respondeu:
- Acho que deixei só metade. A outra ficou aqui para eu sentir dor e saudade.
- Entendo... - disse calmamente enquanto deixava as agulhas. Abriu um armário, retirou uma velha garrafa de rum, a qual abriu com os dentes e extendeu ao marinheiro - Beba! Vai aliviar a dor.
- Não vou sentir dor com essas agulhas.
- Não é dessa dor que estou falando. Estou falando da dor de dentro.
...
No rádio tocava Beatles. A música era "All My Loving". As vozes dos garotos ingleses que diziam: "And then while I'm away. I'll write home every day. And I'll send all my loving to you"
Enquando o "barba negra" fazia seu trabalho, ele olhava pela janela o mar que se confundia com céu o horizonte, procurando saber para quem escreveria sua carta. Para quem mandaria todo o seu amor?
A dor no peito recomeçava.
Não era a dor das agulhas, mas sentia um tremor percorrendo seu corpo.
Virou mais uma vez aquela garrafa com a bebida cicatrizante.
O rude homem de barba negra suspendeu seu trabalho. Olhou para aquela alma sentada em farrapos à sua frente. Desligou o rádio no meio da música, foi até a janela e a abriu. A brisa do mar entrou, tomando conta do recinto. Tomou a garrafa da mão do marujo e virando em sua boca tomou seu trago costumeiro, antes de começar a cantar.
O velho lobo do mar começou então a entoar um velho e conhecido "cântico do mar".
Uma canção pirata que falava de homens valentes e descrentes. De criminosos e vagabundos, que esquecido e odiados por deus, iriam viver e morrer no mar.
O canto falava de guerra, de lutas, de mulheres baratas, de todo tipo de pecado.
E falava do rum.
O voz do "barba negra", que era quase um brado guerreiro, saia pela janela contagiando a vizinhança que acompanhava a velha canção. Marinheiros, pescadores, policiais, ladrões e vigaristas.Todos aqueles homens que viviam do mar, pararam suas tarefas e cantaram o hino dos miseráveis.
E durante aquele tempo, não existia dor. Só o imperioso orgulho de ser homem. Durante aquele momento, não havia mais paixão. Só o profundo amor pela liberdade azul que se perdia no horizonte. E naquele instante, a única saudade que reinou, foi a saudade do mar.
E o marujo na cadeira do tatuador também cantou. E bebeu. E esqueceu de sua dor.
E a tatooagem foi feita, com algumas alterações, é claro.
No centro do coração podia se ler "Amar o Mar".
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