segunda-feira, 27 de junho de 2011

O Poema. de Lula Guimarães



Certa vez fui ao cinema.

Na tela passava um filme brasileiro "O homem que desafiou o diabo", e aquele filme me encantou em todos os aspectos. Mas duas cenas me facinaram: a da luta do caboclo com o "cão miúdo" na casa do preto véio, e a do encontro do caboclo com os três bruxos.

Encantado com a história do filme, procurei o livro que o originou: "As pelejas de Ojuara", obra de Nei Leandro de Castro. E o encanto virou paixão.

O livro narra a história do coitado José Araújo que, de um jeito tão seu, morre e renasce "Ojuara", caboclo disposto que segue suas andanças pelo sertão em busca das terras de São-Saruê .

Mas o livro transcende essa narrativa descrevendo uma cultura viva e bela, de um povo sofrido e sonhador. E em uma das muitas narrativas paralelas, o autor narra um encontro de poetas.



Resumindo o acontecido: Dr. Heleno, prefeito de Ceará-Mirim, promovia um encontro de poetas, organizado por seu assessor puxa-sacos: Alfonsus Laudemus. Para o evento, chegaram poetas de todos os cantos do Rio Grande do Norte. Acontece que a veia artistica falou mais alto que os compromissos, e como todo artista costuma ser muito descompromissado, os poetas beberam tanto que acabaram com toda a cachaça da cidade. Resultado: "foi um despautério. Quando chegou de noite, poucos eram os sobreviventes da peregrinação por todos os bares." No momento do Sarau, na grande sala do sobrado do Barão de Ceará-Mirim, "de pé, representando a raça, estavam presentes apenas tres poetas."

Cada um dos poetas sóbrios já havia recitado sua poesia, quando trocando as pernas, o famoso boêmio e poeta Lula Guimarães surgiu no salão dando seu grito de guerra: "Bebe-se nessa casa?"

Daqui em diante, peço vênia para trancrever o relato:


Alfonsos fez mensão de se levantar para conter a efusão do bêbado. O prefeito o deteve secamente:

- Sirva bebida ao poeta, Alfonsus. E deixe ele falar.

Lula Guimarães emborcou meio copo de uisque escocês, virou o olhar vesgo para a plateia.

- Vou pedir licença para duas coisas - disse com a vozengrolada.-Me sentar e dizer um poema.

- De sua lavra? - perguntou Alfonsus, querendo se reabilitar.

- Alfonsus, fique calado, que você é um bosta! - pediu o poeta.

O prefeito conteve o riso:

- Tem toda a licença, poeta.

O poeta começou a falar, com o olhar estrábico pela bebedeira não fixado em nenhum ponto:


- O poema é roupagem onde me oculto ou me exibo como sol abrindo a corola do dia. Ferida esguichando sangue, pulso decepado por faca rombuda. Beijo na boca, tiro na cabeça, festa no castelo, centauro na planície, gôndola enfeitada de flores. Camaleão em repouso verde, verde na folhagem. No caos de Babel foi a língua mais pura, a música dos gentios. Escravo que carregou as pedras das pirâmides. Ilha perdida, âncora fundeada. Peixe na gruta do aquario. Barco morto na areia. Vã escrita branca de espuma. Verso e reverso da moeda. Estrela, estrela-guia, Aldebarã, Aldebarã.

Na platéia, Celso da Silva começou a prestar atenção àquelas palavras estranhas. Não, não era poesia, pois não tinha rima e métrica, pelo menos para seus ouvidos, era de pé-quebrado. Mas a sua intuição de pesquisador lhe dizia que as palavras do boêmio tinham valor. Pegou papel e lápiz, começou a anotar apressadamente. Lula Guimarães continuava, pouco a pouco firmando a voz, saindo dos vapores do álcool para uma claridade pressentida:

- Tato noturno dos cegos escancarando portas. Olhar que suspende o trapezista no ar. Cavalo ajaezado no picadeiro do circo. Olho do farol girando na treva. Aragem salgada no trapiche. Cal da melancolia. Tecelão de sombras vazando os olhos da noite. Semente de girassol comida pelas éguas no cio. Chaga latejante da manhã, a lamina do sol cortando a grama do jardim. Mosca na sopa, asco. Ultimo esgar na sala perfumada de magnólias e jasmins. Peruca abandonada na cadeira. Vômito do bêbado agarrado ao poste. Rosas que pedem olhares pelas esquinas.

Alfonsus Laudemus, sem entender aquela xaropada de cachaceiro, levantou-se para sair, deu um tropeção que interrompeu o poeta. Esperou-se um palavrão, mas Lula Guimarães estava ungido de poesia e santidade:

- Legado das primeiras uvas colhidas na face da terra. Bafejo da brisa no rosto da mulher amada. Pêndulo parado do relógio esquecido pelo tempo. Lagrimas brilhando no copo de conhaque como grão de luz. Velocípede no sótão. Borboleta azul. Bolor no porão. Pulso de febre. Lebre na mira do caçador. Vinho que acelera as rotações do coração. Vento inflando o seio no vestido pendurado no varal. Caracol cego, as antenas captando o sol. Lã de limo verde no fundo da cisterna. Colisão de vaga-lumes. Funeral de crianças surgindo na tarde num pequeno caixão coberto de rendas. Lua pálida e corcunda entre nuvens brancas perseguidas pelo vento. Exercício de amor na planura da cama. Enxame de abelhas na jóia de teu pubis, tua sede, minha sede. Pão da primeira fornada. Mel do primeiro beijo. Semeadura de aranha no labirinto da teia. Palavra não nascida...

O poeta levantou a cabeça, interrompeu a torrente de palavras que subia de dentro dele como água da fonte do primeiro dia da criação. Fez força para gritar:

-Bebe-se nesta casa?

A voz ficou presa, entalada na garganta. Caiu num choro que lavou o silêncio, as almas, os homens, as mais antigas memórias do casarão.






Com todo o meu carinho à Feliz Fenix,

Um pouco do muito que temos a conhecer.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Depois da Tempestade



Durante a tempestade, no furor dos ventos e trovões, quando a escuridão reina dominante, afogando a esperança em um mar de desastres, o medo pinta de cinza o coração do melhor dos homens.

Independende do Deus que lhe protege, ele se sente sozinho naquele momento, e sente medo.

Medo de que a escuridão nunca acabe.

Medo de que o sol não brilhe amanha.

Medo de que nada voltará a ser como antes.

Uma sucessão de acontecimentos ruins vão aumentando a cada instante, e parece não ter fim.

E quando pensamos que nada pode piorar... algo pior acontece.

Durante a tempestade o melhor dos homens precisa tão somente sobreviver.

Quando a morte não o alcança, ele ganha tempo.

E o tempo é o balsamo restaurador de todas as feridas.

Cicatrizes ficam, mas flores e a falta de memória que o tempo acarreta se encarregam delas.

Depois que a tempestade passa, olhamos em volta e nos horrorizamos com a devastação.

Nestes primeiros instantes, ainda carregamos dentro de nós um pouco do medo que sentimos durante a tormenta.

Mas surgem alguns primeiros sinais.

Os trovões silenciam. O vento deixa de soprar. Os primeiros raios do sol tocam seu rosto.

Depois da tempestade, o homem ao se deparar com estes sinais, olha para dentro de sí e para o Céu... naquele momento ele sente vergonha de, pelo menos naqueles instantes, ter perdido a esperança.

Respira fundo e reconhece que não há nada melhor que um dia após o outro.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Considerações de um ano que começou tarde

Interessante observar que o ano já está na metade, e só agora recomeço a escrever.
Interessante o tempo que se passou, e durante este tempo havia me esquecido o quanto é inspirador olhar para dentro de mim mesmo.
Interessante que o melhor no vazio é o espaço que fica para ser preenchido.
Interessante que a visão de algo tão belo quanto uma rosa é capaz de nos fazer sentir arrependimentos de coisas pelas quais antes nos orgulhavamos.
Interessante que a vida continua, e por mais que não tenhamos tempo a perder ainda nos sentimos tão jovens.